Cartas d´um estrangeiro

Um volume de Victor de Molgénie, editado pela livraria Figueirinhas

“A livraria portuense do snr. Figueirinhas publicou recentemente um volume interessantíssimo: a mulher em Portugal. E´uma magnifica collecção de artigos em fórma de cartas, em que o auctor estuda a mulher portuguesa, sob os seus variados aspectos.

O auctor simula uma viagem por diversos pontos notaveis do nosso paiz e data as suas Cartas de Cintra, Lisboa, Coimbra, Braga, Porto, Vianna do Castello, Faro, Vizeu, etc. Estuda as magnificencias naturaes e artisticas d´esses pontos e fala das nossas mulheres.

Vamos transcrever d´este livro uma das cartas e por este trecho poderão os nossos leitores avaliar do merito d´este interessantissimo livro.

Evora, 22 de Fevereiro de 1907

Querida Marietta: Hora de philosophia. No jardim da D. Evangelina, eu e ella, completamente sós, porque a irmã foi dar a sua lição de piano, falamos com o fogo, com a ancia, com a febre de quem ha muito que anceia pelo desabafo. Estamos commovidos, interessados, bastante nervosos.

Evangelina acha que a educação das mulheres portuguezas está cem anos inferior á da mulher de França.

– Sr. De Moigénie, o mal das nossas meninas é o collegio. Os collegios femininos em Portugal são tudo o quanto ha de negativo, adulterador, improprio. A educanda não é considerada pelo intellecto ou pelos sentimentos. A norma estabelece-se sempre segundo este criterio: é rica? é pobre? Segundo a resposta, assim, é a educação. É rica? Vestirá com luxo, terá preferencias estranhas, poderá furtar-se à disciplina geral, terá excellentes notas por menos que estude, terá liberdade especiaes de maneira que a directora possa fingir que não vê, será perdoada em todos os caprichos, poderá desdenhar impunemente das pobres, ter crueldades, seberba ignorancia, desalinho, se tanto lhe approuver. Nada de educação pratica. Aprenderá a reinar, sem saber governar.

A hygiene será para ella sempre uma exhibição de luxo. Tornar-se-ha eximia em musica vistosa, sem bases solidas, reportórios de valsas e cançonetas, com o outro fado enervante a deprimir – lhe a aristocracia de encommenda. Habituar-se-ha a falar mal a sua lingua, gaphando de elegante glacisismos, todos pedidos aos jornal de moda.  Aprenderá a ver o marido como uma fonte de receita e, depressa a considera-lo como legalisação apparatosa de desmandos mundanos, aliás enroupados com um recato pérfido, hypocrita.

A sua communhão livre, liberrima, com meninas dos mesmo haveres, egualmente privilegiadas, dar-lhe-ha a noção deprimente de vícios deslustradores. E começara a pequenisar a maternidade, a acariciar o triste egoísmo da mulher boneca, vaidosa de trapos e dixes, incapaz de ter saúde nas entranhas, nos nervos, no coração. Hysterica por nativismo, tornar-se-ha epiletica, convulsa, irresponsavel. Gulosa, anemica e maculada, voltará á familia como um veneno requintado, incoercivel.

Depois, no lar, será a perigosa elegante, a mãe gelada, a filha desdenhosa, despotica e melindrosa de humor

Horroroso!

– E as meninas pobres! Inferiores em todos os direitos, esmagadas no cumprimento de todos os deveres, essas infelizes teêm de optar por um, de dois caminhos: ou a revolta, o desespero, a attitude selvagem, a fuga às vezes, a resistencia feroz a todo o ensino, a negação para toda a luz em protesto cego contra tanta injustiça – ou a hypocrisia, o capachismo, que as faz creadas, instrumentos e cumplices das ricas, a aprendizagem da mentira, da intriga, a esterilisação completa, emfim, das virtudes vulgares nos pobres.

– Bem observado, D. Evangelina.

– Podem, porque lh´o ensinaram, ter aprendido mais serviços domésticos, mas, lá no intimo, vem o sonh0 mau, a inveja, a febre de serem o que viram ser as ricas.

E este veneno, pode sufocar-se dentro d´elles com a felicidade do lar, mas no primeiro desgosto, à primeira privação, lá rebenta, lá se desentranha, lá fluctua acima de todo o ser. E então a pobre, a humilde, a como que virtuosa à força, explode em soberba, vicio e audacia. É o desforço horrivel dos desalgemados de súbito – o abuso da liberdade conquistada.

– E é assim em todo o Portugal? Ou esse triste quadro vae ter excepções?

– Poucas, creia? Mas como não ha-de ser assim?

– Comprehendo, a rotina…

– O Estado, Sr. Moigénie, o Estado…

– Como o Estado?

– Sabe quem são na generalidade, as directoras dos collegios em Portugal?

 – Não.

– Senhoras com uma simples habilitação, que não cauciona, pelos menos, a mentalidade.

– E´ espantoso?

– Onde está um curso para directoras de colegios? Dirá o snr. Moigénie, que nas Escolas Normaes? Mas, estas são ainda uma vergonha, em geral. Há uma professora boa para seis más. Ensino prático, positivo, sadio, é, ainda, uma utopia em Portugal.

– O mesmo me disse uma intelligente senhora no Porto.

– E disse-lhe a verdade. A mulher portugueza só tem perfeita a escola da vaidade. O luxo, no que tem de mais absurdo, de mais ridículo, de mais exaggerado, eis o que a nossa mulher aprende, desde o lar á escola, desde a escola á maternidade.

– Mas será só culpado, o Estado?

– Também o são os maridos, por exemplo? Homens, ha que fazem, de esposas bonecas volantes, que gostam de vêr adoradas na rua, porque esse culto lisongeia simplesmente a sua vaidade. Canta, tocar piano, calçar meias de seda, todos os dias, rescender a violentos perfumes, é a mulher ideal para os maridos, não veêm que os creados é que governam e que o lar perde todo o encanto.

– Ignorancia!

-Ignorancia… vestida de illustração. Esses homens leêm só romances, conhecem o bom tom, discutem os negocios publicos. Teêm só um defeito – não sabem reinar e governar, não sabem ler o que é util, são e radical, vivem de exterioridades, ás vezes de expedientes, sempre de ficções. Discutem o orçamento do Estado e não sabem fazer uma operação arithmetica. Falam com elegância sobre todos 0s assumptos, e nada conhecem.  Criticam toda a manifestação artisitica e são incapazes de fazer um quadro, um livro ou uma valsa.

-Educação superficial.

-Peor: o snr. de Moigénie não sabe como é a educação portugueza?  Tudo se resume em fingir? F….finge que é sábio? Que faz para isso? Lê almanachs e impinge as suas curiosidades. B…finge que é bom. Que faz? Estuda um acto decorativo e impinge-o como producto da sua alma. C…Finge que é digno. Que faz? Aproveita um lance barato e, com largos gestos, aparenta uma dignidade perfeitamente romana.

Tudo se finge em Portugal. Há estadistas que só por muito bem fingirem, escalaram os Concelhos da Corôa. Diz – se, d´um litterato consagrado, que plagia com grande arte tudo quanto lhe attribuem.

São os meus votos, snr. de Moigénie. E muito obrigada pela condolencia junto da desorientação portugueza.

Entardecia. Levantá-mo-nos a um tempo. D´ahi a pouco estava no meu quarto para te escrever. Medita estas notas. Não haverá ainda em França qualquer coisa d´ isto, que infelicita Portugal? Adeus”.

 Comércio de Guimarães, edições de 4 (nº 2197) e 8 de Outubro (nº 2168) de 1907, p.1